A 110ª edição do Tour de France, a volta ciclística mais prestigiada do mundo, teve início dia 1 de julho de 2023 e seu grand depart foi em Bilbau, cidade da Comunidade Autônoma do País Basco, que é a capital da província Biscaia. Ou trocando em miúdos, foi em Bilbao na Espanha. 175 guerreiros divididos em 22 equipes de 8 ciclistas, rasgaram as estradas rumo a mais famosa boulevard do mundo, a Champs-Élysées em Paris, onde finalizaram o espetáculo no domingo dia 23 de julho. Entre essas três semanas há dois dias de descanso compulsórios.
Apesar dessa introdução o motivo dessa postagem é precisamente a etapa 19 – Moirans-en-Montagne à Poligny, da última sexta-feira dia 21 de julho. Foram 172,8 km de um trajeto em médias montanhas onde três ciclistas escaparam da fuga da outra fuga de outra fuga… enfim, foram os mais fortes e atentos as movimentações das diversas tentativas de fugas que ocorreram. Os três gladiadores foram o australiano Ben O’Connor da equipe AG2R Citroen La Modiale, o dinamarquês Kasper Asgreen da equipe Soudal Quick-Step e o esloveno Matej Mohoric da Bahrain Victorious. Os três ciclistas, cientes de que não podiam facilitar a vida dos perseguidores, mantiveram um ritmo frenético, quase insustentável após três semanas de Tour, impondo 49,1 km/h de média, o que foi simplesmente a 5ª mais rápida média do Tour de France do todos os tempos.

Todos que viram os três chegando aos metros finais sabiam que Ben O’Connor não era nem de longe o mais qualificado para aquela chegada escapada. Todos sabiam que a decisão ficaria entre Kasper Asgreen, que tinha vencido a etapa anterior, também escapado, e Matej Mohoric. A organização do Tour liberou uma mensagem de rádio da equipe Bahrain para Mohoric que traduzi da seguinte forma:
“Vamos Matej! Eu acho que o O’Connor não é tão rápido, você sabe, mas todo mundo está cansado. Logo fique de olho no Asgreen. Vamos!”
Depois disso vemos Matej apertando suas sapatilhas, sinal de que a hora estava chegando. Pouco depois O’Connor decide ir pro tudo ou nada, faltando 400 metros para chegada, colocando umas duas bicicletas de distância para Asgreen que reage ao ataque, levando consigo Mohoric em sua roda. Faltando 200 metros Asgreen e Mohoric já deixavam O’Connor para trás. Com 100 metros para o fim Mohoric abre para esquerda de Asgreen e ambos vem rasgando juntos até o a linha de chegada. Matej Mohoric bateu Kasper Asgreen no movimento final que a gente chama de jump, um movimento que bruscamente projeta a bike pra frente. Foi incrivelmente emocionante!

Após a prova ele dá uma entrevista tão honesta que, juro, me quebrou. Estava vendo no meu horário de almoço no trabalho e tive que lidar com as lágrimas de frente pro monitor e com colega de sala a poucos metros. Não tive como me conter.
Segue uma tradução. Fiz o menor número de adaptações que pude da transcrição da entrevista.
Matej, obviamente não é sua primeira vitória em um Tour de France, mas você pode explicar o que essa vitória significa para você?
Significa muito, pois é difícil e cruel ser um ciclista profissional. Você sofre muito na preparação, sacrifica sua vida, sua família. Você faz de tudo para chegar aqui preparado e em questão de dias você percebe que todos os outros estão incrivelmente tão fortes que as vezes é muito difícil se manter na roda deles. Outro dia na Col de La Loze eu estava tão cansado, sem forças, daí você lembra que ainda tem que subir aquilo tudo, terminar a etapa e fazer tudo isso novamente amanhã. Daí você vê o pessoal que trabalha na equipe acordar todos os dias as seis da manhã, sair pra correr por uma hora, e depois terminar o trabalho as onze ou meia-noite, pois a gente precisa de pneus, marchas e ainda tem a fisioterapia, massagem. Daí as vezes você sente que não pertence a isso aqui, porque todo mundo é tão incrivelmente forte e você com dificuldades de se manter na roda. Hoje mesmo fiquei o tempo topo pensando nisso. E você sabe que o cara que está puxando está sofrendo tanto quanto você, e é tão cruel estar pronto para o ataque decisivo. Quando o Kasper atacou ele estava tão forte, ele esteve na fuga de ontem e ganhou a etapa, e ter a vontade e determinação para fazer tudo isso novamente, assim… você só sente que não pertence a isso aqui. Daí o eu segui, eu sabia que tinha que fazer tudo perfeito, eu dei o meu melhor, pois não fiz só por mim, mas por Gino*, pela equipe, e por fim eu meio que sinto que os traí [Ben e Kasper], pois os bati em cima da linha, mas é isso que é o esporte profissional, todos querem ganhar. Obviamente se eu queria ganhar tinha que seguir na roda do Kasper e tentar o bater na linha, nos últimos 50 metros e agora estou sentindo tanta coisa.
Onde você encontrou essa determinação?
Eu não sei, como disse, não quero ter arrependimento algum quando voltar ao ônibus da equipe. Não venço sempre porque não sou tão forte quanto os outros, mas consigo manter a cabeça fria e o foco nos momentos cruciais. Quando Kasper atacou na subida eu estava com muitas dores, mas sabia que era o movimento decisivo. De alguma forma consegui alguma força mental para manter o ritmo até o topo e me manter nas rodas. Não fui egoísta, também tentei contribuir para gente se manter na fuga, pois sabia que se assim não o fizesse não conseguiríamos. Teve um momento em que senti pena do Ben, pois sabia que ele não tinha forças para o sprint, mas ele também colaborou com a fuga, pois queria disputar a vitória, mesmo sabendo que teria menos chance que nós dois. Nos metros finais Ben atacou, pois era sua única chance. Sabia que o Kasper era de longe o mais forte, daí me mantive na roda dele e basicamente ele me embalou. Eu não tenho um sprint forte, mas depois de um dia duro como esse ninguém sabe. Só estou feliz, pela equipe e por tudo que aconteceu no último mês.
Você tinha parado de acreditar?
Eu não me importava. O dia todo eu só queria dar o meu melhor. Sempre soube que posso vencer uma etapa do Tour de France, pois já venci outras duas. Sou forte o bastante, mas sei que tem outros 150 caras fortes o bastante também. Eu não sou o único. Cada um dos ciclistas, a essa altura, também merece uma vitória. Eu vi o rosto dos caras no grupetto, outro dia, no Col de la Loze. Você sabe o que todos eles estão passando. Eu sei o quanto uma vitória no Tour de France pode mudar sua vida. Gostaria que todo mundo pudesse ganhar uma etapa do Tour de France, mas não é possível e isso é cruel.
É por isso que você está tão emocionado?
Sim, e também por conta da equipe. Nos acreditamos tanto nisso, passamos por momentos difíceis, com tudo o que aconteceu, sim, estou muito feliz e orgulhoso agora.

Nesse mesmo dia no The Breakeway Show (GCN+, Eurosport), Daniel Lloyd contou que o chefe da equipe Cannondale relatou em uma entrevista que Matej Mohoric, que há pouco se tornara profissional, não alcançaria grandes feitos em sua carreira, pois ele pensava demais, se preocupava demais com tudo e com todos. Pois bem, chegou longe mesmo pensando demais e a ponto de se sentir relativamente desonesto de atacar nos instantes finais para ganhar uma etapa. Que a vida recompense a quem se preocupa com outrem. Vida longa e próspera a Matej Mohoric!
Aqui está o link para o vídeo da entrevista após a vitória, via youtube. Infelizmente não tive como incorporar a postagem, pois não permitem.
https://www.youtube.com/watch?v=pjTROQR9pHQ
*Gino Mader, companheiro de equipe de Mohoric que faleceu devido aos ferimentos que teve em um acidente durante a 5ª etapa do Tour da Suíça no dia 16 de junho de 2023.