Iniciam-se as férias de 2019 e minha primeira missão é carregar meus pais para cima e para baixo. Sim, minhas férias são em agosto. A dona mãe já teve carteira de motorista, mas não a renovou e não dirige há mais de dez anos. Já o Sr. meu pai está com sérios problemas de saúde que implicam diretamente em sua capacidade motora. Ou seja, não há como escapar.
A tarefa de hoje era comprar uma bicicleta para netinha deles, minha sobrinha. Minha mãe insistiu que isso deveria ocorrer no Carrefour sudoeste, Goiânia, e pra lá fomos não sem antes meu pai reclamar do caminho que o aplicativo Waze indicou. Bem normal.
Chegamos e já demos de cara com TVs gigantescas e meu pai, que hoje fica a maior parte do tempo de frente para TV, ficou fascinado. O foco dele ficou tão difuso que por fim ele comprou uma lavadora nova. Isso que é foco! Não que ele tenha comprado por esporte, longe disso, era que ele estava de olho numa promoção há um tempo e achou o prazo, a perder de vista, muito tentador. O convenci a deixar a possível troca da TV para próxima black friday. Após a compra fomos direto para uma pastelaria que fica nos corredores do hipermercado.
Parte 1 – Enquanto aguardávamos os pastéis
Os pasteis demoraram a sair e com isso tive tempo de assuntar o que ocorria nas imediações. Desde o momento que cheguei reparei na postura corporal de ambos os indivíduos que compunham a mesa ao nosso lado. Dois homens, de frente um para o outro. O mais velho colocava suas mãos sobre a mesa de forma discreta, juntas como se estivesse rezando, mas não estava. O outro também estava com as mãos sobre a mesa, também juntas, mas não tão leves, parecendo se impor. Falavam sobre algo que tinha ocorrido na igreja e o tempo todo o mais novo usava passagens bíblicas para explicar algo que ocorrera.
A conversa foi ficando acalorada de forma que eu achei que aquilo resultaria em briga. Pelo que pude compreender, enquanto também tentava dar atenção aos meus pais, era que alguém queria se casar, mas o pastor, o mais velho (o rapaz o chamava de pastor), não concordava com isso. Como disse acima, o rapaz argumentava utilizando passagens da bíblia e o pastor sempre reagia com uma risadinha cínica. Até eu, quem nem compreendia o que de fato estava ocorrendo, me irritei com o cinismo do pastor. A coisa continuou assim até que em determinado momento rapaz se levantou e falou:
– Francamente pastor! Não sei o que estou fazendo aqui. Só perdi tempo vindo aqui falar com o senhor. No mais Fulana já está noiva e todos, inclusive toda igreja, já sabem e não há nada que vocês possam fazer.
– Senta rapaz, não terminei!
O pastor continuou com sua postura cínica e o rapaz, de forma ríspida, foi embora. Sem briga, pelo menos.
Parte 2 – Enquanto comíamos os pastéis
Nessa manhã o drama não estava restrito a mesa ao lado. Explico: Meu pai evita ao máximo comer fora de casa por conta de seus problemas motores. E uma coisa que não tinha reparado, quando fiz o pedido dos lanches no QG, é que os copos dos refrigerantes são daquele material meio papel meio plástico que são bem moles. Isso é um sério empecilho, pois meu pai, com suas limitações, não consegue segurar os copos com firmeza suficiente sem os pressionar excessivamente. Logo esse tipo de copo se torna um estorvo.
Dirijo-me ao balcão e pergunto se eles tão têm canudos. A moça prontamente diz que não disponibilizam mais canudos, nem pra comprar. Volto pra mesa e explico a situação pro meu pai, lembrando-o da guerra ecológica contra os canudos. Ele compreende a situação mesmo que visivelmente frustrado. Minha mãe para o lanche dela e tenta o ajudar na tarefa agora extremamente complicada de beber um simples refrigerante. Ele a pede pra parar pois estava sentindo vergonha da situação. Ela usa uma desculpa do tipo “vergonha é se molhar todo, blá blá blá” ou algo do tipo e ele se rende ao companheirismo dela e a vontade de beber o líquido.
Deveria tentar prever melhor essas situações, visto que, quando entrei no estacionamento do hipermercado, reparei em duas pessoas que acabavam de estacionar em vagas reservadas a portadores de deficiências e/ou idosas, mas ambos não preenchiam requerimento algum para ocupar aquelas vagas. Sim, olhei nos para-brisas e não tinham adesivos e nem cartões. Já dentro do hipermercado solicitei o carrinho motorizado e ao tentar sair com o carrinho notamos que o mesmo estava descarregado. Tivemos que optar pela cadeira de rodas tradicional, sem tração elétrica, que por sinal foi a pior cadeira de rodas que já utilizei com meu pai em todo esse período de aventuras em supermercados.
Pequena moral da breve história parte 2:
Se você tem sérias dificuldades de locomoção e dificuldades motoras é preciso que você tenha sua própria cadeira de rodas motorizada. É também preciso que você carregue seu próprio canudo não descartável em algum dos seus bolsos caso pense em lanchar por aí. É preciso também contar com a cordialidade e consciência dos outros cidadãos para não estacionarem seus carros nas vagas reservadas e ter sorte de não encontrar ninguém obstruindo os recessos necessários para transpor o meio-fio. Boa sorte.
Parte 3 – Quando terminamos os pastéis
Todo o constrangimento da situação foi providencialmente dispersado assim que minha mãe lembrou que tínhamos ido até o hipermercado com outra finalidade e não pra comprar uma lavadora nova. Rimos um pouco do quão dispersos fomos, nos rendendo aos brilhos das telas da seção de eletrônicos e com os prazos a perder de vista dos eletrodomésticos, que acabamos por nos esquecer do objetivo principal, que era comprar uma bicicleta pra netinha deles.
Deixamos a área de alimentação e voltamos ao supermercado. Fomos direto as bicicletas. Só tinham unidades montadas, não as tinham em caixas. Pegamos e Pagamos. Já no carro não conseguimos colocar a bicicleta nem no porta-malas nem no banco de trás. Voltamos ao rapaz que julga as pessoas, ou guarda os volumes, e perguntamos se podíamos buscar a bicicleta depois. Ele chamou alguém no rádio. Essa pessoa não respondeu. O período de espera já passava de cinco minutos quando minha mãe começou a perder a paciência com a demora. Assim que ela se dirigiu ao cara do guarda volumes, uma moça, ao lado, perguntou:
– A senhora gostaria de cancelar essa compra?
– Sim, quero sim!
– É só me dar o CPF e se a compra foi feita no cartão vou precisar dele também.
– Tá tudo aqui moça.
– Então podem acompanhar a patinadora que ela vai levar vocês até ao caixa pra cancelar.
– Ok.
Iniciava-se o cancelamento de uma compra no valor de R$ 600 por não poderem guardar um produto por 30 minutos. Que bom que a compra da bicicleta foi separada da lavadora de R$ 3.000. Desde o vendedor da lavadora até o momento final no caixa, enquanto cancelávamos a compra da bicicleta, todos os funcionários reclamavam da forma como seu empregador lhes tratava. O mais bizarro foi que não perguntei ou estimulei nada em momento algum. Soava com um desabafo.
Do Carrefour do sudoeste fomos para uma loja de bicicleta onde meu pai costumava fazer a revisão da dele. Lá compramos uma bicicletinha mais bonita, no tamanho correto, por R$ 200 a menos. Fomos bem atendidos, meu pai pode contar algumas anedotas ao vendedor, relembrou momentos saudosos de quando ainda pedalava e de quebra o moço colocou a bicicletinha dentro do carro pra gente.
Fomos para tão longe para no fim comprar numa loja tão perto de casa.